Onde estará aquela Viçosa de dez, vinte anos atrás?
E que cidade teremos daqui a cinco anos?

Arquiteta e Professora Maria Marta S. Camisassa*
Arquiteto Ricardo dos Santos Teixeira**

Algumas respostas podem ser dadas: Viçosa estaria escondida nas águas poluídas do São Bartolomeu ou vice-versa? O Ribeirão, certamente, está sendo escondido por trás dos inúmeros edifícios que vão surgindo na paisagem. Nem mesmo seus habitantes [nativos ou nativados] se lembram que existia um córrego ali atrás dos prédios, por baixo do posto de gasolina, ou do Shopping da Moda, por baixo do Shopping Chequer... As fotos da antiga Viçosa foram emolduradas para ficar na parede daqueles mais saudosistas. Nem mesmo o tempo gasto nos engarrafamentos nos horários de pico permite que sua população veja o que ainda resta da antiga cidade. O que vem acontecendo é que aquela Viçosa vai deixando de ser a Viçosa que tinha uma escala ainda humana e torna-se a cada dia mais insalubre. Salubridade não diz respeito apenas a um sistema de esgoto que serve a todas as suas unidades. Mas diz respeito também ao ar fresco – diga-se, aquele bem cheiroso – que deve entrar por todas as janelas, aos raios de sol que poderiam inundar os interiores de todos os espaços construídos, a uma arborização ao longo das ruas, em vias de desaparecer nos raros pontos onde ainda se encontrava uma sombra para parar e conversar com os amigos ou estacionar o carro enquanto se faz uma compra ou vai ao self-service predileto. Diz respeito à existência de jardins, públicos e privados, e quintais arborizados, onde ipês e árvores frutíferas poderiam encher as vistas e ainda decorar as mesas antes de serem saboreados.

No século XIX, quando ainda não se tinha uma ciência que resolvesse as epidemias que atemorizavam as autoridades, o processo de urbanização incontido, até então desconhecido e quase impossível de ser planejado, atormentava planejadores e moradores que buscavam uma vida mais confortável! Conforto, ar puro, verde, tudo era buscado para uma melhoria do espaço urbano.

E agora? O que vemos em Viçosa? Neste início de século XXI, uma retomada das condições típicas do século XIX!!! A demanda por novas habitações, por novos serviços, por mais metros quadrados construídos na cidade, faz com que o que estava ali naquela esquina ou naquele quarteirão, desapareça para ser substituído por novos edifícios. Será que o novo é mesmo de melhor qualidade? A voz popular diz sem dó nem piedade (nem daqueles que construíram e moraram naquela edificação): “aquele prédio não tem valor nenhum...”. Pergunta-se: que valor? Qual valor? De uso? De composição urbana? Financeiro? Afinal, também como diz o leigo, “coitado/a, eu conheço ele/a [o/a proprietário/a]! Não tem outro recurso senão aquele imóvel! Se não vender [por tantos milhões de reais] não sairá nunca daquela situação!” Não mesmo? Há aí uma defesa de que fulano vai ficar rico como outros que estão fazendo a mesma coisa na cidade, só por ser “um coitado”? Esse mesmo ‘coitado’ que ajudou a construir a cidade agora quer prejudicá-la? Este des-envolvimento está sendo desfavorável à qualidade urbana coletiva, pois a cidade vai minguando na sombra de magrelos edifícios que se repetem sem nenhuma criatividade e sem nenhuma preocupação com o amanhã.

Uma outra resposta à pergunta inicial seria: a antiga cidade foi substituída por “apertamentos” com péssima acústica, sem privacidade, sem iluminação e ventilação adequada... A distância entre os novos prédios vai ficando apenas como as juntas de dilatação do concreto, que um centímetro ou pouco mais é suficiente para disfarçar ou resolver um problema físico do material. Mas, e os moradores? Bastaria a eles apenas uma “junta” para deixá-los afastados dos vizinhos, para receber ar fresco, sol e ter uma paisagem que não seja a visão direta das janelas do vizinho? Por parte da iniciativa privada, encontra-se grande dificuldade em apreender que o interesse público está acima do particular e, quanto mais, que o direito de propriedade não é equivalente ao direito de construir.

Como sempre, a iniciativa privada tende a resolver seus problemas particulares. No caso, o seu “caixa”. Em tempos de neo-liberalismo, mais se torna visível essa dinâmica. Desde a Revolução Francesa, nos idos mil e setecentos e tantos, se procurava estabelecer a Declaração Universal de Direitos Humanos, finalmente aclamada pela ONU em 1948, como parâmetro para medir a liberdade e a igualdade de todos. No Brasil, o Estatuto da Cidade (Lei Federal no. 10.257/2001), que tem o mesmo peso do Estatuto da Criança, do Idoso, do Desarmamento e tantos outros, é documento de referência nacional que deixa muito claro o seu objetivo:

“[...] estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. [...]

Infelizmente, ainda se tem que lembrar alguns [desavisados] de que a legislação federal é válida em todo o território nacional, inclusive em Viçosa. Infelizmente também, ainda se tem que lembrá-las que as leis estaduais e municipais não podem ser contrárias à legislação federal. Neste sentido, com que direito, então, alguém decide que seu imóvel vale mais na sua conta bancária que na paisagem urbana? Com que direito alguém defende a conta bancária alheia se o pomo de discórdia é um bem que diz respeito ao bem estar coletivo? Será que não havia nenhum charme nestas edificações?

Pense em seu vizinho: se ele constrói na divisa de sua propriedade um prédio de dois, três, quatro, dez andares, você será prejudicado? De que lado, você recebe a luz do sol? De que lado vêm os ventos? Qual a paisagem que você tinha e que perderá com a nova construção? Quem sabe até uma visada daquela árvore do vizinho que te fazia lembrar que era primavera ou tempo de manga? Será mesmo que os novos edifícios têm uma qualidade melhor do que teriam os mais antigos se fossem recuperados e reabilitados para novos usos? Assim, não se defende apenas o grandioso, o que provocou alarido, aquela história escrita pelos “grandes”, mesmo por que se não fossem os menores, os mais humildes, nem a parede estaria de pé. A cidade foi construída por todos eles, grandes, pequenos, médios, etc.

Mais do que isso: o que contar para as crianças de hoje como era a cidade, ontem? Será que a paisagem urbana deve ser como os anúncios comerciais na tela da televisão que mudam a cada minuto?

 


*arquiteta pela UFMG e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFV; atualmente, membro do Conselho Municipal de Cultura e Patrimônio de Viçosa.

**arquiteto pela UFV; ex-chefe do Departamento de Patrimônio da Prefeitura Municipal de Viçosa; atualmente, membro da equipe técnica da Secretaria de Patrimônio da Prefeitura Municipal de Ouro Preto.